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Nós "curriculamos" e somos "curriculados" PDF Imprimir E-mail
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Escrito por Claudio Zarate Sanavria   
Qua, 23 de Julho de 2008 21:00
"O currículo é aquilo que nós, professores/as e estudantes, fazemos com as coisas, mas é também aquilo que as coisas que fazemos fazem a nós."
(SILVA,1995:194)

Quero começar minhas considerações lembrando-me de dois fatos interessantes que me ocorreram durante o meu ensino fundamental. O primeiro deles ocorreu durante a minha 3ª série, numa escola bem conceituada de minha cidade natal, onde as aulas de Educação Artística se caracterizavam pela separação de meninas, que tinham aulas de bordado, e meninos, que tinham aulas de artesanato com sucata. O segundo fato marcante se deu durante a minha 7ª série, onde as aulas de Educação Física passaram a ser mistas e os alunos agrupados pelas referências esportivas: foi a única vez que fiz esta disciplina com prazer, treinando handball. Muitos anos depois estes fatos me voltaram à mente, no momento em que me pego redigindo o título deste texto. Por que será? Por que só aprendi a costurar fora da escola? Por que fui obrigado a jogar futebol por tantos anos? Por quê?

Assim, de modo geral, começo afirmando que penso o currículo como um tema que merece uma robusta discussão, dada a sua importância na educação escolar. Silva(1999) afirma que os professores sempre estiveram envolvidos com a questão do currículo, antes mesmo deste se constituir numa área especializada de estudos. Segundo Silva(1996) há muito tempo o currículo deixou de ser um assunto meramente técnico, voltado para questões metodológicas e técnicas. Mas será que os professores, principalmente os ligados à rede pública de ensino, e até mesmo os que possuem maiores possibilidades de complementarem sua formação inicial, realmente têm noção de que discutir o currículo é um ato muito mais complexo do que a mera eleição de conteúdos científicos?

Historicamente, sabe-se que o tratamento dado ao currículo passou pelas teorias tradicionais, pelas teorias críticas, até o surgimento das teorias pós-críticas. As teorias tradicionais enfatizam o caráter neutro de científico do currículo, o que é combatido pelas teorias críticas e pós-críticas, preocupadas em questionar constantemente os conhecimentos que devem ser sistematizados, como aponta Silva(1999).
O título deste texto, inspirado na afirmação de que "nós fazemos o currículo e o currículo nos faz."(SILVA,1995:194), não objetiva revisar o tratamento histórico dado ao currículo e sim buscar elementos que possam elucidar melhor a dualidade entre fazer um currículo e ser "feito" por ele. Dessa forma, buscar-se-á o apoio de autores da área na tentativa de se traçar um caminho em busca desse esclarecimento.

Silva(1995) afirma que, ao produzir o currículo, professores e estudantes podem também ser produzidos de formas muito particulares e específicas, que dependem das relações de poder. Silva(1995) ainda defende que o currículo não se resume apenas na mera transmissão de conhecimentos e sim como um discurso que nos constitui como sujeitos. Isso deixa claro que o currículo nos faz, na medida em que permeia o processo de construção de identidade social e nos dá características particulares e específicas. Não quero aqui criar uma confusão entre a particularidade do sujeito citada e o individualismo pregado pelos teores neoliberais, uma vez que somos todos iguais sim, enquanto seres humanos dotados de direitos e deveres, e ao mesmo tempo somos todos diferentes, únicos, particulares, enquanto sujeitos social e historicamente construídos.

É importante que observemos os aspectos ideológicos que podem estar implícitos no currículo. Silva(1995) afirma que o currículo e o discurso sobre o mesmo implicam em processos de regulação e governo da conduta humana. Nesse sentido, observamos que o currículo assume um caráter de tecnologia de governo, envolvendo-se na produção de sujeitos particulares. É importante salientar que o termo ideologia não pode ser compreendido aqui como um falso conteúdo e sim como idéias que transmitem os interesses de um grupo, como afirma Silva(1996), que também defende que a ideologia certamente está no centro do processo de produção de identidades individuais e sociais no interior das instituições educacionais. Podemos visualizar de certa forma o risco de que haja a confusão entre a particularidade e o individualismo.

Nesse sentido a escola, com seu papel de certa forma culturalmente atribuído de transmissora do currículo formal, aparece como um eficaz meio de implementação desse currículo de caráter ideológico. Veiga(1995) enfatiza que a escola é constituída por duas faces contraditórias. A face conservadora defende o individual, o preparo do homem para desempenhar seus papéis sociais. A visão progressista visa uma preparação para a vida sociopolítica e cultural.

A face conservadora da escola, apontada por Veiga(1995), permite que a mesma sirva de instrumento para o que Silva(1995) define como "moldagem dos corpos", onde a determinação de posições, gestos, movimentos e comportamentos fixam os indivíduos em grupos sociais específicos. Sabemos que essa é a realidade da grande maioria das escolas e cabe nos perguntarmos se os professores estão dispostos a abandonarem esse modelo. Paraíso(1996) afirma que existe um silenciamento das questões que possam provocar reflexões e atitudes nas pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem. Além disso, ocorre também uma organização curricular que exclui o professor desse processo, transformando-o em mero executor desse currículo formal. O professor, segundo Silva(1995), também é submetido a um processo de disciplinamento, domesticação e sujeição. Dessa forma o currículo assume um caráter formador no sentido de legitimar e reforçar hierarquias sociais. Mas será que o professor, sabendo de sua condição de executor, tem vontade de "curricular"? Os movimentos trabalhistas estão dispostos a ir além das discussões salariais da docência?

Além desse caráter perpetuador das classes, presente no currículo, Carvalho(2005) chama a atenção para o fato da escola da modernidade estar participando do processo de homogeneização das nações, descaracterizando as diferenças, ou seja, ao mesmo tempo em que deixa bem definidos os limites sociais dos indivíduos, o currículo desconsidera os aspectos culturais do mesmo, ao invés de assumir uma postura de educação intercultural e multicultural. Nesse momento lembro-me de algumas colegas meninas da 3ª série querendo aprender artesanato e sendo sumariamente proibidas pela minha professora. Volto a chamar a atenção para o perigo de formarmos sujeitos individualistas julgando estar favorecendo a particularidade dos mesmos. Nós "curriculamos" quando efetivamos uma cultura e estabelecemos as diferenças entre os diversos grupos culturais. Ao mesmo tempo, vivemos a realidade de sermos "curriculados" por um modelo cultural homogêneo e padronizado, excludente, descaracterizador.

Esteban(2004) enfatiza que é prudente se pensar em escola como espaço plural. Porém o que se percebem são práticas educativas desfavoráveis àqueles que se mostram diferentes do modelo escolar. Estes acabam por ser "curriculados" no pior dos sentidos: como massas de modelar que devem se encaixar nas fôrmas do modelo escolar. Canen(2002) lembra que esse multiculturalismo representa uma ruptura epistemológica com o projeto de modernidade, cujo progresso se vincula à homogeneidade cultural.

Veiga(1995) define a face progressista da escola como uma visão da mesma sendo um espaço de luta e contestação. Essa visão vem ao encontro das afirmações de Silva(1995) sobre uma noção de poder que leva às noções associadas de libertação e emancipação. Porém, para Silva(1995), poder e saber não podem ser separados, pois se constituem em uma relação necessária. Além disso, Corazza(2001) defende que o poder agora é menos visível, mais insidioso, sem centro fixo, pois vive-se um tempo de reciclagens de ideologias, conhecimentos e comunicação. Carvalho(2005) reforça dizendo que o currículo praticado envolve as relações entre poder, cultura e escolarização, representando as relações presentes no cotidiano escolar. Carvalho(2005) também afirma que entender a escola como um campo de possibilidades em aberto é um passo fundamental para trabalhar o respeito ao outro na escola, entretanto isso não seria suficiente para transformá-la.

Para Esteban(2004) não há lugares fixos nos quais os sujeitos serão incluídos, tampouco processos uniformes que promovam indiscutivelmente a democracia, visto que esta última não pode ter sua concepção fixa e imutável, já que se constitui de uma produção histórica e social.

Sabemos que o desafio é grande para o professor, dentro de um sistema que na maioria das vezes, senão em sua totalidade, lhe impõe os conteúdos e os seus métodos de trabalho. Muitas vezes há a consciência por parte do docente e até mesmo nasce nele uma vontade em mudar. Porém muitas vezes acaba por se acomodar e permitir que seja apenas "curriculado". Entretanto, Silva(1995) lembra que nós professores podemos sim agir sobre o currículo, desviando-o e contestando-os. É esse o sentido da palavra "curricular", que tomei a liberdade de usar neste texto. Ao mesmo tempo que produzimos esse currículo, somos produzidos, "curriculados", particularizados e, portanto, tomados de forças para lutar.

Ao contrário do meu hábito de escrita, senti a necessidade de escrever este texto em primeira pessoa, por muito me identificar com o que tratam os diversos autores aqui citados. É difícil escrever um texto como este sem se sentir parte do mesmo. Não há como se afastar o suficiente para me ver fora de todo esse processo. Recordo-me com satisfação das minhas aulas da 7ª série, onde não fui obrigado a praticar o esporte símbolo do meu país e sentia o prazer de estar crescendo, fazendo o que me dava realização.

Triste é saber que a grande massa de colegas docentes não tem sequer a chance de entrar em contato com idéias e posicionamentos como este. A formação continuada, quando ocorre, enfatiza apenas os aspectos conteudistas do currículo enquanto sistematização do conhecimento científico, concentrando todos os esforços na criação e repasse de "receitas" de como transmitir esse conhecimento, de maneira acrítica e até mesmo inconsciente.

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Referências Bibliográficas

CANEN, Ana e OLIVEIRA, Ângela M. A. de. Multiculturalismo e currículo em ação: um estudo de caso. Revista brasileira de educação. Rio de Janeiro, n. 21, p. 61-74, set/out/nov/dez, 2002.

CARVALHO, Janete Magalhães. Pensando o currículo escolar a partir do outro que está em mim. In. FERRAÇO, Carlos Eduardo. (org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo/SP: Cortez, 2005. (94/111)

CORAZZA, Sandra. Currículos anternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo. In. CORAZZA, Sandra. Que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001. (97-102)

ESTEBAN, Maria Teresa. Diferença e (des)igualdade no cotidiano escolar. In. GARCIA, Regina Leite e outros. (orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir. Rio de Janeiro: Dp&A, 2004. (159-177)

PARAÍSO, Marlucy Alves. Lutas entre culturas no currículo em ação da formação docentes. Educação e realidade. Porto Alegre/RS, v. 21, n. 1, p. 137-157, jan/jun. 1996.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e identidade social: territórios contestados. In. SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995. (190-207)

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte/MG: Autêntica, 1999. (11-27)

SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo com artefato social e cultural. In. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades terminais: as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. (83-96)

VEIGA, Ilma. P. A. Escola currículo e ensino. In. Escola fundamental: currículo e ensino. Campinas/SP: Papirus, 1995. (77-94)




 

Autor deste artigo: Claudio Zarate Sanavria - participante desde Qui, 06 de Março de 2008.

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