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Reflexões sobre a construção estereotipada de heróis e heroínas das histórias infantis |
Escrito por Sueli Aparecida Zambon | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Dom, 01 de Agosto de 2010 03:51 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
SUELI APARECIDA ZAMBON
REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO ESTEREOTIPADA DE HERÓIS E HEROÍNAS DAS HISTÓRIAS INFANTIS
São Carlos 2009
Universidade Federal de São Carlos Centro de Educação e Ciências Humanas Departamento de Metodologia de Ensino Especialização em Educação Infantil e a Escola de Nove Anos: Pesquisas e Gestão do Cotidiano Escolar
REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO ESTEREOTIPADA DE HERÓIS E HEROÍNAS DAS HISTÓRIAS INFANTIS
Monografia apresentada ao DME/CECH/UFSCar para obtenção do título de Especialização em Educação Infantil e a Escola de Nove Anos: Pesquisas e Gestão do Cotidiano Escolar, sob a orientação da Profª Drª Lúcia Maria de Assunção Barbosa.
São Carlos 2009
AGRADECIMENTOS
Agradeço: aos meus pais Irineu e Apparecida, aos meus filhos Anderson Luiz e Melanie, à minha nora Elisangela, razões primeiras da minha insistência em continuar sempre.... à minha orientadora Lúcia Maria de Assunção Barbosa, pela valiosa colaboração e presteza em me auxiliar. Minha eterna gratidão a todos. RESUMO
Este trabalho tem como objetivo pesquisar e avaliar as tipificações estereotipadas dos modelos de heróis e heroínas das histórias infantis. O estudo se justifica tendo em vista a importância que o tema assume na atualidade. Existe, hoje, uma busca constante para a melhoria das práticas pedagógicas com o estudo de um novo olhar sobre a educação que visa à melhoria da convivência entre alunos e professores, pais e alunos, pais e professores e entre os próprios alunos. Nesse sentido, estudar a realidade educacional com uma visão menos discriminatória acerca da diversidade pode contribuir com a melhoria da qualidade do processo educacional. Foram selecionados para este estudo quinze livros infantis, a fim de identificar a tipificação física e psicológica dos heróis e das heroínas neles presentes. Trabalhar a democratização do ensino nos primeiros anos de vida é essencial para melhorar o índice de aprendizado dos alunos, estimular desde cedo a busca pelo conhecimento e eliminar as diferenças de origem socioeconômica. Se as questões sobre diferença são fundamentais para entendermos as relações que ocorrem na escola, por ser um espaço de sociabilidade e de práticas culturais, muitas vezes essas práticas acabam traduzidas em estereótipos e preconceitos.
Palavras-chave: Estereótipos. Preconceito. Diferenças. Heróis. Heroínas. SUMÁRIO
ILUSTRAÇÕES
1 INTRODUÇÃO
O estereótipo vem sendo discutido mais amplamente nos últimos tempos, uma vez que ele envolve as relações humanas em diferentes dimensões. De acordo com Itani (1998, p.119),
Falar de preconceito em uma sociedade onde as pessoas vivem em condições desiguais, não é uma tarefa muito fácil de ser cumprida. [...] Pode-se mesmo afirmar que o preconceito faz parte de nosso comportamento cotidiano.
Ao interagirmos com alguém, levamos em conta não só o que estamos vendo e ouvindo, como também o conhecimento de que dispomos sobre o nosso grupo social e sobre o grupo ao qual pertence a pessoa com quem interagimos. Não se pode negar que, em tempos de intercâmbios comerciais, artísticos, culturais ou científicos, o florescimento de uma cultura homogênea esteja cada vez mais presente no nosso meio. A padronização do vestuário e a globalização, por exemplo, trazem consigo uma tendência mundial à uniformidade. Todavia, a humanidade nunca se viu tão ameaçada pelo aumento das desigualdades entre as nações e também entre as classes sociais[1] no interior de praticamente todos os países. O meio em que crescemos e no qual nos educamos coloca-nos em contato com determinados padrões de comportamento pré-estabelecidos, aparentemente naturais, mas que são, na verdade, aprendidos ou apreendidos ao longo de nossa vida. Noções e categorias relativas à distância, ao espaço, aos padrões estéticos, ao que é considerado bom ou mau, são fortemente marcadas por nossa cultura. No que concerne às crianças, desde pequenas elas aprendem a ter um comportamento ditado por regras, que leva em conta alguns padrões que teimam em aparentar novos, apesar do tempo e das mudanças gerais. O aprendizado infantil ainda está aquém no que se refere ao respeito, à tolerância e à compreensão de que é preciso preservar a diversidade em seus diferentes formatos: social, étnico-racial, de gênero, por exemplo. É preciso reconhecer, compreender e respeitar o fato de que somos diferentes física e culturalmente e são essas diferenças que nos complementam como seres providos de inteligência. Sabemos que a criança estabelece com o mundo o diálogo que ela apreende. Se este diálogo for ideologicamente confuso, demagógico ou tirânico, entre muitos outros, esta criança irá, de certa forma, reproduzi-lo, seja nas idéias, seja na sua prática de vida cotidiana. O estereótipo pode ser uma base para a formação de preconceitos, no sentido em que julga um fato ou alguém com base em características pré-estabelecidas como corretas, impedindo que se possa examinar a complexidade dos fatos de forma honesta e objetiva. Estereótipos são, na verdade, rótulos usados para qualificar, superficial e genericamente, grupos étnicos, raciais, religiosos, nacionais e até grupos de pessoas de mesmo sexo ou profissão. São imagens simplificadas ou caricaturais. Conforme Itani (1998, p.119),
Freqüentemente nos defrontamos com atitudes preconceituosas, seja em atos ou gestos, discursos e palavras. A sala de aula não escapa disso. E trabalhar com essa questão, ou mesmo com a intolerância, não está dentre as tarefas mais fáceis do professor.
Cabe à família, primeiramente, ensinar à criança a importância de conviver com as diferenças entre as pessoas e a respeitar cada uma pelo que é e pelos valores que traz consigo. O princípio de tudo está no respeito com que educamos nossos filhos. Eles absorvem mais as informações transmitidas pela família do que as passadas pela escola ou pelos amigos. Quando chega à escola, a criança já traz consigo uma grande bagagem de vida e já tem delineada a sua personalidade. A competência da escola consiste em aceitar os alunos como eles são em sua diversidade e orientá-los na convivência pacífica e no aprendizado mútuo. O preconceito e os fenômenos a ele associados não são instintivos no ser humano: ninguém nasce preconceituoso. O preconceito é aprendido por meio da aplicação de valores negativos às diferenças. Vejamos o que nos diz Queiroz (1995, p.102):
Seria adequado lembrar aqui o relato feito à antropóloga Ruth Benedict por um índio digger da Califórnia, no qual transparecem, a um só tempo, uma admirável compreensão da diversidade humana e a denúncia da extinção do seu povo, causada pelos contatos com os brancos: “No princípio, Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de barro, e por esse vaso bebiam a sua vida. Todos enchiam o seu vaso mergulhando-o na água, mas os vasos eram diferentes. [...] mas o nosso vaso quebrou-se, desapareceu.”
A diversidade é da nossa natureza, como nos organizamos e interagimos no nosso ambiente; ela compõe o conjunto do que somos e é fator de enriquecimento e abertura a novas e diversas possibilidades. É importante educar a criança desde o nascimento para entender que a diversidade não se constitui defeito, ela é fruto da natureza diferenciada de cada ser humano. Assim,
Não basta reconhecer o direito às diferenças, precisamos intensificar as diferenciações, incitá-las, criá-las, ou seja, recusar a homogeneização sutil, despótica, em que incorremos às vezes sem querer quando nos subordinamos a um modelo único ou a uma dimensão predominante. (ABRAMOWICZ et al., 2006, p.74)
Nesse sentido, esta nossa proposta busca analisar os perfis físicos e psicológicos de heróis e de heroínas em alguns livros infantis, uma vez que eles têm em suas características, representações ideológicas de crenças e valores na busca a uma ordem social ou à ordem ideal através da materialização do que seja perfeito. 1.1 A CRIANÇA E A LITERATURA
1.1.1 A influência das histórias infantis
O herói ou heroína da estória é o protagonista. Para a criança, não é raro o herói apresentar atributos positivos: coragem, força, uma enorme capacidade de superar os obstáculos que se apresentam além de alguma coisa que o torna um ser único, talvez não necessariamente um super-poder, mas algo que possa ser uma característica de sua personalidade. A coragem de um herói ou heroína precisa vir de uma capacidade de resolver o problema de forma inteligente, para poder enfrentar seus próprios medos corajosamente. Vale ressaltar que as reflexões aqui esboçadas não significam que devemos deixar de contar histórias para nossas crianças e sim, aproveitar seu encantamento pelo mundo fantástico da imaginação levando-as a perceber e a respeitar as diferenças.
1.1.2 A função da literatura na vida da criança
Pode-se dizer que a função principal da literatura infantil é a educação da sensibilidade que proporciona uma nova visão de mundo e uma nova percepção da realidade. Assim,
Se analisarmos as grandes obras que atravessaram os tempos e se impuseram como literatura infantil, veremos que pertencem simultaneamente às duas áreas: a da arte e a da pedagogia. Pondera que, quando a literatura infantil provoca emoções, dá prazer e diverte, ou ainda, modifica a consciência de mundo de seu leitor, ela é arte. (COELHO, 2000, p.46)
A literatura tem o poder de educar o sentido apreciativo da beleza através de uma imagem ou de uma palavra. Neste trabalho, ressaltamos a importância das histórias infantis no desenvolvimento dos pequenos uma vez que os heróis e heroínas presentes nas histórias representam a bondade e o grande valor da alma humana.
Conforme Pastrello (2001, p.13),
Nos contos de fadas a criança tem a oportunidade de entrar em contato com um mundo encantado: “O Mundo dos Contos”. Quando se narra um conto e se fala o “Era uma vez”, a criança se transporta para um tempo especial, um tempo sagrado que a leva também a encarnar o papel do herói, do príncipe ou da heroína e da princesa.
A criança ouve histórias que podem levá-la a uma mudança interior, pois os contos têm o poder de despertar as qualidades latentes da nossa alma. A criança, quando ouve uma história, não a entende através do intelecto, mas a vive interiormente. O herói ou heroína podem também ter como aliada uma fada madrinha, que impulsiona o príncipe e a princesa à realização de atos bondosos, que torna possível a união ou a que os salva de bruxas e dragões, e os torna felizes para sempre, como no conto da “Cinderela”; outras vezes, o herói e a heroína recebem a ajuda de um “ser da natureza” que aparece na hora certa, para salvá-los dos perigos. Outro fato interessante: os personagens que recebem ajuda desses seres são puros, bondosos e bonitos como todos os outros personagens das histórias infantis que não têm ligação com o mal. As crianças adoram ouvir o mesmo conto muitas vezes para poderem elaborar todos os detalhes. Elas se transportam para dentro da história e imaginam-se os heróis, enfrentando todos os perigos, salvando todos os inocentes e recebendo todas as honras pelos atos heróicos. De acordo com Oliveira (2006),
Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária, atualizam ou reinterpretam em suas variantes questões universais, os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando realidade e fantasia, no clima do "Era uma vez...".
É importante, porém, passar para a criança que, na comparação dos heróis das histórias infantis com a vida real, com o nosso dia a dia, com a luta pela sobrevivência, com a convivência com o inesperado, surgem outros heróis, de carne e osso, que muitas vezes nem são tão perfeitos fisicamente, nem tão bonitos, nem brindados com lindos olhos azuis e também nem tão heróis assim. Muitas vezes somos surpreendidos pelos revezes da vida, nos deparamos com nosso desespero ante o confronto com a realidade onde nossos sonhos se transformam em pesadelos; ou então nos sentimos golpeados pelo destino diante da percepção de que a vida não é um conto de carochinhas. A vida real, muitas vezes nos apresenta a angústia diante da verificação de que as princesas ainda aguardam os seus príncipes que não chegarão, em seus cavalos brancos que não existem. Para Corso (2006, p. 303-305),
Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. [...] Uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis emocionalmente, capazes de reagir adequadamente a situações difíceis, assim como criar soluções para nossos impasses. [...]. Mesmo que elas saibam que não vivemos no melhor dos mundos, lhes infundimos a esperança de que os bons podem salvar a situação.
A vida real tem suas maravilhas, seus medos, seus fracassos e vitórias, suas susceptibilidades e suas dores e é preciso que a criança entenda a diferença na relação entre varinha mágica e vida real e que todos somos heróis, na medida da nossa possibilidade, na convivência com o nosso dia-a-dia e na vulnerabilidade da nossa condição humana. A criança pode ser levada a imaginar que o ser humano só tem um lado bom e, que, se tem um sentimento mal será necessariamente mau. E passa a estereotipar seus pais, irmãos e amigos, criando uma relação falsa e fantasiosa com a realidade que a cerca.
1.2 OS TRADICIONAIS HERÓIS E HEROÍNAS DAS HISTÓRIAS INFANTIS
Os contos infantis embalam-nos desde o berço nas palavras sussurradas ao dormir, passando pelos livros de ilustrações coloridas onde cada virar de página é uma descoberta, onde os heróis ou mocinhos tem a bela missão de nos fazer felizes com sua beleza, força e bondade. Estas lendas, fábulas e contos nunca deixaram de fazer parte do imaginário de muitas e muitas gerações, que viram neles uma referência do belo, do perfeito.
Dessa forma,
... os contos infantis são responsáveis pela formação de uma hierarquia de valores, de um universo de referências que contribui para moldar comportamentos e influenciar mentalidades. Como se nos tornássemos Peter Pan, o menino que não queria crescer, aprisionados por um desejo no maravilhoso mundo da infância onde tudo é possível e o bem prevalece sempre. (GOMES, 2004).
Com esses conceitos, a criança estabelece um parâmetro de aceitação do que é bonito, do que é bom, do que é preciso ser, e tudo o que fugir da forma estabelecida, passa a ser visto sob outro olhar. Desse modo, a criança é levada a acreditar que heróis são criaturas perfeitas, dotadas de atributos físicos extraordinários, tipicamente guiados por ideais nobres e altruístas: liberdade, fraternidade, sacrifício, coragem, justiça, moral e paz, pois as histórias que lhe são lidas para acalentar o sono trazem a perfeição de um mundo irreal, uma realidade que elas sonham existir, mas que não existe de fato, a não ser na sua mente povoada de ilusões. As antigas questões do que seja correto ainda são realidade: a bela, loura e magra heroína, a velha, nariguda e feia bruxa, o gordinho baixinho e engraçado, o estrangeiro desonesto e perigoso, o branco predominando como símbolo do bem, o preto predominando como símbolo do mal. Acostumados com essas imagens, somos levados a reproduzir sempre os mesmos estereótipos. O problema não é usar o estereótipo, é fazer uma escolha consciente de quais estereótipos queremos usar e quais deles desejamos questionar ou subverter. Os vilões das histórias geralmente têm um olhar frio, uma expressão ruim ou falta-lhes expressão e emoção, porém são vaidosos, trajam-se muito bem, são demasiadamente preocupados com a própria aparência e muito interessados em poder e riqueza. São manipuladores e extremamente desonestos, usando desses predicados para subjugarem suas vítimas. Eles conhecem as fraquezas da heroína (ou herói) e usam de ameaças físicas e psicológicas. Na maioria das vezes, os vilões sentem-se poderosos em relação ao herói, pois sabem como destituí-lo do poder. Seria possível outra forma de caracterizar os vilões das histórias, que não fosse esse jogo de poder? 1.3 OBJETIVOS DA PESQUISA
Nosso trabalho tem como objetivo tipificar heróis e heroínas presentes em alguns livros de literatura infantil onde se observa uma estreita relação entre o preconceito e os estereótipos apresentados, nos quais pretendemos também analisar as imagens estereotipadas nas histórias infantis. Ao mesmo tempo, pretendemos exemplificar as mudanças que ocorreram através dos tempos, quando novos autores surgiram com outras idéias acerca dos heróis e heroínas, desmistificando o mito da princesa linda e loura, e trazendo para as nossas crianças novas idéias de heróis e heroínas mais condizentes com a realidade humana.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Os referenciais teóricos tornam-se pertinentes na medida em que nos permitem lançar outro olhar sobre os estereótipos, desconstruindo velhos conceitos e vislumbrando outras possibilidades. Para o estudo dos estereótipos utilizaremos os conceitos apontados por Lígia Assumpção Amaral, Cláudia Vianna e Alice Itani (1998); Silvia Orthof (1985); Anete Abramowicz, Valter Roberto Silvério e Fabiana de Oliveira (2006), autores que discutem a educação e conceitos de diferenças. Esses estudos orientaram e forneceram parâmetros metodológicos de avaliação do corpus.
2.1 O ESTEREÓTIPO DAS FIGURAS INFANTIS
As razões do sucesso dos contos infantis residem justamente no fato de falarem a linguagem emocional em que se encontra a criança. Para Bettelheim (1986, p.14),
Esta é a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável e parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa.
Ao mesmo tempo em que a criança necessita viver essas experiências, é necessário também que lhe sejam dadas outras sugestões em forma simbólica sobre como ela pode lidar com estas questões e crescer... Os personagens infantis são mostrados como puros e apresentam sentimentos únicos. O personagem representante do “mal” é completamente isento de atrações, passa a história toda vitorioso e aparentemente feliz, mas no final, o herói sempre vence, demonstrando através de sua ação que o crime não compensa. No entanto,
Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou imagens agradáveis e otimistas deveriam ser apresentadas à criança – que ela só deveria se expor ao lado agradável das coisas. Mas esta visão unilateral nutre a mente apenas de modo unilateral, e a vida real não é só agradável. [...] As figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo tempo, como somos todos na realidade. (BETTELHEIM, 1986, p. 17)
Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de o herói ser mais atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas lutas e acredita que sendo esse herói um ícone da bondade e da beleza, tudo o mais que se apresenta no mundo real, que não tem o mesmo lindo cabelo, os maravilhosos olhos azuis, aquela força fora do comum, está longe de ser o seu herói. Esse contexto pressupõe uma realidade de que todos os heróis são sempre bons, todas as heroínas são lindas, louras, brancas, não sentem dor, não tem explosões de raiva, não acordam com dores de cabeça, enfim, não são reais. A nossa condição de seres humanos, por vezes, faz emergir o lado mau e ressalta atitudes menos altruístas. 2.2 COMO SÃO CONSTRUÍDOS OS ESTEREÓTIPOS?
Observa-se que as figuras das histórias infantis estão presentes no “despertar pedagógico da criança”, com implicações na interpretação que esta fará sobre o mundo que a circunda; são imagens que, principalmente através do entretenimento, encontram-se entranhadas na subjetividade contemporânea. De acordo com Buoro (1996, p.35),
A criança, atualmente, enfrenta os sedutores apelos da sociedade de consumo. Para citar apenas um exemplo, as normas ditadas pela televisão tornam a conduta infantil cada vez mais marcada por modelos estereotipados que, muitas vezes, transformam-se em obstáculos para a construção de um conhecimento mais significativo.
A criança constrói seus estereótipos na medida em que lhe é sugerido que só o bem vence e que os heróis são figuras boas e carismáticas, brancas, louras, altas, possuem olhos azuis e nunca envelhecem nem adoecem. Com esses parâmetros, a criança delineia um perfil dos seus ídolos. Com esta construção, é determinante que, tudo o que estiver fora dessas condições pré-estabelecidas não seja considerado normal. Por outro lado, conhecer apenas personagens tão perfeitos, ainda que na ficção, pode implicar um despreparo para entender a realidade, onde nem todas as pessoas são altruístas, muito menos lindas e perfeitas. Nesse sentido, pode surgir a dificuldade em lidar com a realidade, pois essa criança já tem uma concepção sobre o que é considerado belo e passa a discriminar toda e qualquer pessoa que fuja desses conceitos pré-estabelecidos. Ela própria tende a se punir quando se sente comparada a outro que aparentemente esteja mais enquadrado com essa realidade construída. Para Amaral (1998, p.18),
O estereótipo é a concretização/personificação do preconceito. Cria-se um “tipo” fixo e imutável que caracterizará o objeto em questão – seja ele uma pessoa, um grupo ou um fenômeno. Esse estereótipo será o alvo das ações subseqüentes e, ao mesmo tempo, o biombo que estará interposto entre o agente da ação e a pessoa real à sua frente.
Nossa existência social está superlotada de estereótipos geralmente vinculados a negros, homossexuais, prostitutas, loucos, japoneses, índios, estrangeiros e, infelizmente, a mídia impressa e televisiva reforça e até perpetua essas distorções tornando-as “naturais” aos olhos dos espectadores. Ainda assim, os conceitos e padrões impostos pelos contos de fadas não devem descartar sua leitura para as crianças. De acordo com Dantas (2004),
Sylvia Orthof, mesmo implicando com os conceitos e padrões impostos nos contos de fadas, não descartava totalmente sua leitura para as crianças. Para a autora, a hipocrisia estimulada pelo universo do “e eles viveram felizes para sempre” e o uso moralista das histórias deveriam tomar outro rumo: Por que não poder nunca pegar um atalho na vida? Será que haverá sempre um lobo mal no outro caminho? Apesar de tudo, Sylvia ainda achava que histórias que sobreviveram tanto tempo deveriam ter seu mérito, mas acenou com uma nova possibilidade de caminho literário mostrando, com sua obra, que ser politicamente correto não é ser correto.
É inegável que as histórias de contos de fadas tão presentes no mundo infantil tenham seus encantos. No entanto, devemos lançar um olhar diferente à procura de novas possibilidades de leituras que trabalhem com o mundo da imaginação, porém desconstruindo as imagens estereotipadas.
2.3. CONCEITOS DE DIFERENÇA
Neste item, vejamos os conceitos explicitados por Amaral (1998, p.12),
Para falarmos de diferença, precisamos falar de semelhança, de homogeneidade, de normalidade, de correspondência a um dado modelo. Mas quais conceitos utilizamos para “decretar” que um objeto, um fenômeno, alguém ou algum grupo é diferente? E quando considerarmos “significativamente diferente”? Quais os parâmetros? Quando falamos simplesmente de “diferenças”, talvez estejamos apenas referindo-nos a características ou opções que, embora sinalizando dessemelhanças, não criam climas extremamente conflitivos: [...] cor dos cabelos; preferências pelo azul em detrimento do amarelo; São Paulo e não Corinthians, ou vice-versa; gostar de jiló... e assim por diante.
Muito mais complexas são as diferenças no contexto das relações humanas, que se estabelecem a partir de um fator determinante que sinaliza o que é “normal” e o que é “diferente”. Bhabha (1998, p.63), entende o conceito de diferença como sendo “[...] processo da enunciação da cultura como conhecível, legítimo, adequado a construção de sistemas de identificação cultural”. A diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. Se por um lado, a diversidade cultural dá ênfase a práticas, valores, costumes, símbolos e significados estruturalmente ligados às relações estabelecidas entre as pessoas, por outro lado, a diferença cultural vem hierarquizar esses significados entendidos como construções histórico-culturais originárias de relações de poder estabelecidas entre grupos diferentes. São reconhecidas as diferenças, mas, ao invés de aceitá-las como dadas, examinam-se as hipóteses atrás das diferenças que causam os resultados desvantajosos para desenvolver tratamento diferente ou resposta que desmantele as desvantagens. A seguir, sintetizaremos três critérios apontados por Amaral (1998, p.13), nos quais é possível fazer aproximações pertinentes sobre a noção de “diferença”, pois nota-se através dos relatos,[2] que alguns parâmetros utilizados para definir a diferença significativa, ou o desvio aos padrões estabelecidos, ou a anormalidade, o “ser diferente”, pressupõem a eleição de critérios para esta finalidade. 2.3.1 O critério estatístico que define “diferença”
Para Amaral (1998, p.13), a partir do conceito de normalidade, o que estiver abaixo, ou acima deste modelo é considerado diferente ou anormal e o critério estatístico pode ser analisado através de uma variável matemática alcançada pela soma de n valores que define, por exemplo, a altura média do homem brasileiro. Outra variável é a “moda” que corresponde a um máximo de freqüência num total de distribuição que nos dá, por exemplo, a maior freqüência de mulheres sendo professoras de 1º grau, e assim, os homens que optam por essa forma de magistério seriam considerados diferentes, desviantes, anormais. Percebe-se que esses valores não são naturalmente dados, mas correspondem a fatores historicamente constituídos, e que não dão conta de especificidades das diferenças significativas.
2.3.2 O critério estrutural/funcional
Ainda segundo o que nos diz Amaral (1998, p.13), o critério estrutural/funcional refere-se à natureza onde estamos incluídos como seres humanos e às coisas e objetos por nós construídos. A integridade da forma e/ou a competência da funcionalidade são critérios que podem definir modalidades de diferença significativa, embora seja necessário destacar que não é possível haver naturalidade ou universalidade de todas as características estruturais ou funcionais de pessoas ou objetos. Entretanto, é inegável que a espécie humana tenha certa “vocação” para estabelecer determinadas características ou mesmo peculiaridades do metabolismo que controlam os movimentos e praticam ações como sentar, andar, pegar, sem que, para isso, tenha a necessidade de mecanismos especiais.[3] Qualquer alteração nessa “vocação” caracteriza a pessoa como significantemente diferente, anormal e com deficiência. Ex.: alguém que precisa se locomover de cadeira de rodas, ou que necessita de aparelho para corrigir surdez, ou lentes oculares grossas para correção de alto grau de miopia. 2.3.3 O critério que estabelece um tipo “ideal”
É determinado pela comparação entre uma determinada pessoa ou grupo, a um grupo tido como “ideal”. Como nos fala Amaral (1988, p.14), em nosso contexto social, esse “tipo ideal” corresponde, no mínimo, a um ser: jovem, másculo, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente perfeito, belo, inteligente. A verdade é que a aproximação a esses ideais é perseguida consciente ou inconscientemente por todos nós, uma vez que o afastamento dela caracteriza a diferença e a anormalidade. É preciso que estejamos cientes de que a “normalidade” e a “anormalidade” existem dentro do nosso contexto, mas o que efetivamente nos interessa na experiência do cotidiano é problematizar os parâmetros que as definem para podermos pensá-las de forma inovadora. A partir do questionamento desses parâmetros, Amaral (1998, p.15) ressalta que se pode pensar a “anormalidade” não mais como patologia[4] seja individual ou social, mas como expressão da diversidade da natureza e da condição humana, qualquer que seja o critério utilizado. A construção de um modelo ideal determina um estigma, uma marca àquelas pessoas que se afastam de uma idealização em determinado contexto. O estigma é a marca, muitas vezes responsável por uma generalização indevida da pessoa com alguma deficiência. Ela é colocada numa condição de deficiência global. Eis o que nos relata Amaral (1998, p.17),
Os depoimentos nesse sentido são numerosos e talvez, o mais conhecido deles tenha sido dado pelo escritor francês Chevigny (1946) que, ao ficar cego, viu-se repentinamente tratado também como deficiente auditivo e mental. Relata, para ilustrar essa informação, que em dada situação, foi convidado a tomar chá em casa de uma conhecida e esta, ao servir, perguntou ao seu acompanhante: “o chá dele é com ou sem açúcar?” Eis a presença do mito.
A questão do estigma por vezes é tratada linearmente: determinada atividade não pode ser desenvolvida por certa pessoa com certa deficiência, ou, só pode ser desenvolvida por pessoa com uma deficiência já estabelecida. Nota-se que não existe o respeito à pessoa envolvida no sentido de permitir-lhe a avaliação das suas reais possibilidades em relação a uma determinada atividade, não lhe sendo nem ao menos sugerido o direito de tentar. Em última instância, toda essa temática é baseada em parâmetros utilizados para designar a condição de “anormalidade”. Conforme salienta Amaral (1998, p.26) seja o leque do preconceito, estereótipo, estigma, abrindo-se na vigência das relações humanas estabelecidas na escola, seja a constatação de uma condição e o seu enfrentamento realístico, nos leva a um olhar diferente: a criança com deficiência pode e deve ser vista como nem menos que, nem pior que. Conforme nos diz Roso (et al. 2002),
Como lembra Mulvaney (1994), a tendência a valorizar a cultura do outro como inferior a nossa é, talvez, a maior barreira a ser evitada. O desafio para melhorar a comunicação (intercultural) é através da consciência e respeito a outras culturas, ao invés de avaliá-las. Acima de tudo, a comunicação exige responsabilidade moral (e ética, acrescentamos).
Desse modo, é imperativo que percebamos as nuanças infinitas que colorem o dia-a-dia, o cotidiano propriamente dito, com a nossa visão um tanto obscurecida pela força e vitalidade da ideologia dominante. Conforme assinala Bhabha, (1998, p.63),
Pensar o “limite da cultura” como um problema da enunciação da “diferença cultural" significa ir além do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, da crítica aos racismos e às discriminações, assim como dos processos de exclusão e inclusão, individuais e grupais. A cultura deve ser teorizada justamente onde ela se torna um problema, ou seja, "no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças e nações.
A diversidade sócio-cultural faz parte do nosso contexto e não pode ser entendida como exotismo ou extravagância, devendo haver uma interação que possibilite o acesso a outros conhecimentos. Devemos encontrar um novo sentido para a escola e procurar pelos caminhos da diversidade, um destino de portas abertas às diferenças e comprometido com as desigualdades. Em uma educação democrática, não só os dirigentes, mas todos os envolvidos devem participar na definição dos rumos da educação. Um ponto de partida para que exista o respeito à diversidade na escola é aceitarmos que ninguém tem o monopólio da verdade e que cada indivíduo tem interesses, visões de mundo e culturas diferentes. Daí a importância de haver permanentes negociações para que todos tenham parte dos seus interesses e valores contemplados na escola, enquanto espaço público. 3 METODOLOGIA
3.1 ANÁLISE DE CONTEÚDO
Para o desenvolvimento dessa pesquisa, realizamos uma análise das imagens de heróis e de heroínas das histórias infantis, fazendo uma abordagem qualitativa das características que surgem com maior freqüência em todas as histórias analisadas. Utilizaremos a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977) para proceder à análise e à exploração das imagens e das características dos personagens. Após realizar uma breve pesquisa a respeito dos estereótipos, da compreensão de como se estabelecem as relações sociais e a percepção do outro na nossa sociedade, fizemos a escolha dos livros que serviram de base para nossos estudos e que foram submetidos à análise. 3.1.1 Seleção do corpus
Com determinação a desenvolver uma pesquisa que possibilite outro olhar sobre a questão dos estereótipos, em especial à questão das figuras de histórias infantis, escolhemos um caminho que julgamos estar de acordo com o objetivo proposto. Optamos por ler alguns autores com opiniões diversas sobre o assunto: figuras dos heróis e heroínas infantis e como a criança absorve esse modelo e o aplica na vida real. Interessante aqui relatar que, enquanto alguns autores exaltam a singeleza dos contos infantis, debruçam na importância que eles apresentam em desmistificar o medo, amparar a criança no seu crescimento, traduzir suas dúvidas, aliviar seu coração povoando-lhes a mente com heróis e heroínas que nunca morrem[5], outros tratam de questionar velhos conceitos que acabam por trazer uma falsa idéia de realidade e até mesmo evoluir para um estereótipo prejudicial à sua formação[6]. Para este trabalho elegemos um corpus de quinze livros infantis, destacando a semelhança de valores e formas que encontramos nos heróis e heroínas presentes na literatura infantil. A paixão pela fantasia no ser humano começa desde cedo, na mais tenra idade e os contos de fada fazem parte da sua infância, porque mais que distrair e desenvolver a criatividade, as histórias infantis ativam mecanismos inconscientes relacionados à vida familiar, ao desenvolvimento das identidades sexuais e ao amor. Por isso, devemos discutir o papel formativo dessas histórias no crescimento das crianças e nas igualdades sociais.
3.1.2 Exploração do material
Julgamos adequado conduzir a investigação tendo uma abordagem qualitativa, traçando um plano de coleta e análise dos dados, neste caso, os tradicionais livros infantis de contos de fadas. Os livros de histórias infantis de contos de fadas tradicionais citados neste trabalho como Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel (IRMÃOS GRIMM, 1994) e outros, têm coincidentemente, o mesmo perfil quanto aos seus heróis e heroínas, pois todos apresentam um retrato do belo: o belo príncipe, a bela princesa. Algumas publicações mais atuais, também aqui citadas como Histórias de Bruxa Boa (LUFT, 2004), Minha irmã é diferente (ALMEIDA, 1991), demonstram a preocupação dos autores em enaltecer os valores da alma humana em detrimento da beleza exterior. Alguns autores conhecidos nos elucidaram a respeito dos estereótipos e a sua predominância no convívio escolar, quando as suposições influenciam as atitudes, quando há uma grande dificuldade em fazer um julgamento justo sobre alguém ou alguma coisa. É preciso reconhecer que a noção de beleza difere de acordo com as culturas, como observa Abramowicz (et al. 2006, p.105),
Na concepção africana a noção de “belo” não é algo voltado para a estética. Aquilo que é considerado belo deve ter uma finalidade, deve possuir um valor utilitário.
No entanto, os estereótipos circulam através dos tempos, sobretudo pelas histórias infantis, abrindo caminho para o preconceito de raça, cor, credo e tudo o que se mostrar diferente do que é tido como padrão a ser seguido. 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
4.1 CARACTERÍSTICAS FÍSICAS E PSICOLÓGICAS DOS HERÓIS E HEROÍNAS PREDOMINANTES NAS HISTÓRIAS INFANTIS
Nesta parte, trataremos da apresentação do corpus a ser analisado. 4.1.1 As histórias tradicionais
4.1.2 As outras histórias e seus heróis: mudanças que se percebem
4.2 ANÁLISE DE DADOS
Pensa-se que na escola, os estereótipos, o preconceito e a discriminação, se existem, não são significantes, no entanto, é no ambiente escolar que se pode reproduzir imagens negativas e preconceituosas. A análise da escola como sendo um espaço de práticas e relacionamentos que pode produzir estereótipos e preconceitos, mas também resistências, novos valores e atitudes, talvez nos ajude a estabelecer um distanciamento crítico que permita enxergar para além das visões dominantes sobre as relações entre as pessoas. O preconceito é latente na fala, seja pela palavra, seja pelo tom de voz, seja pelo cochicho, a linguagem do corpo serve como um instrumento de distinção entre as pessoas, deixando suas marcas que, na maioria das vezes, inicia um processo doloroso e irreversível na personalidade. Imaginar que os preconceitos não existem é permitir que sejam perpetuados por meio de uma realidade fictícia, que encaminha as crianças para caminhos discriminatórios e cruéis, deixando-as com uma significante queda na auto-estima e incapacidade de se tornarem pessoas confiantes em si mesmas e na sociedade que as cerca. De uma forma geral, o preconceito é moldado a partir da incapacidade da escola em manter um espaço de discussões e práticas inovadoras, mantendo-se num olhar retrógrado, numa perspectiva de poder que marginaliza o portador de deficiência física, o homossexual, o pobre, a mulher, o negro, o índio, o estrangeiro. Neste sentido, as práticas escolares justificam as relações de poder e de dominação, incentivando os sistemas de hierarquização de classes, de raça, de etnia, de gênero e de sexualidade. Na análise sobre os livros mais conhecidos de histórias infantis pudemos perceber a grande influência do belo, da felicidade aliada à riqueza, do feio aliado à maldade, e assim pudemos observar a perpetuação de figuras estereotipadas ao longo de décadas, formatando histórias que traduzem mensagens de conteúdos que mesclam o belo com o trágico. Não podemos negar que todas essas histórias que povoaram o nosso mundo em décadas passadas ainda são tão presentes nos dias atuais, espelhando nossa esperança, nossa felicidade e toda nossa vivência infantil. Quantas de nós não quiséramos ter os lindos e negros cabelos da Branca de Neve, sua pele alva e a admiração de um príncipe encantado? As belas carruagens, roupas lindas, príncipes encantados embalavam-nos os sonhos de outrora. Mas quem é o príncipe encantado? Aquele cujo beijo nos toca tão profundamente que consegue despertar-nos de um sono mais forte que a própria morte? O príncipe encantado da vida real talvez não seja a pessoa mais brilhante, a que escreve as mais belas cartas de amor ou a que encanta a todos com seu porte atlético. Na história O Príncipe-Rã ou Henrique de Ferro (IRMÃOS GRIMM, 2000), este só despertou o amor da linda e loura princesa quando se mostrou belo, pois só assim mereceria o amor de tão maravilhosa criatura. Desde muito cedo as meninas são ensinadas a serem bonitas, são-lhes inculcadas qualidades como: delicadeza, sensibilidade, recato, fragilidade, são nascidas para a maternidade, para o encontro com seu príncipe encantado. Entre tantas outras histórias de reis e rainhas maravilhosos, apareceu-nos O patinho feio (FRANÇA, 1993) que, claro, para ser feliz no final da história, precisou descobrir que era um belo ganso, afinal, não seria ele feliz se continuasse feio. Vivemos num mundo constituído pelas diferenças que, infelizmente, ainda não são devidamente reconhecidas e respeitadas. Nossa realidade é de um mundo que cultua excessivamente a beleza. O apelo à estética, à ditadura da beleza na qual estamos inseridos, atinge também nossas crianças. Em A Bela e a Fera (DISNEY, 1993), a fera acabou por se transformar em um belíssimo príncipe, pois tão linda jovem não poderia terminar a história apaixonada por uma fera horrorosa e disforme. Porém, nesta história percebe-se que entre os personagens começou a existir uma grande atração, apesar dos padrões de beleza serem opostos. A busca pela aceitação, tanto nas histórias infantis como na vida real está diretamente ligada à anulação das diferenças para resolução dos conflitos e, uma vez desconstruído o diferente, todos serão felizes para sempre. As crianças, ao terem acesso apenas a esse padrão estético, não tem outra saída a não ser almejar a semelhança física com os heróis para que se sintam aceitas, pois os pobres, os gordinhos, os negros, os que têm alguma deficiência física estão fadados a serem infelizes para sempre. Na história da Bela Adormecida (DISNEY, 1981), por exemplo, o príncipe se apaixonou por ela imediatamente, encantado por sua formosura, sua aparência delgada e seus cabelos maravilhosos. Na história da Cinderela (IRMÃOS GRIMM, 1994), o importante era que os pezinhos perfeitos coubessem nos delicados sapatinhos de cristal. Cinderela, mesmo maltratada e humilhada pela madrasta, sendo forçada a trabalhar desde pequena, conservava sua linda pele, mãos e rosto perfeitos, dignos da paixão de um belo príncipe. O problema não é a existência da diferença, mas a sua utilização como objeto de desigualdade, onde uns se tornam melhores que outros. Nos primeiros livros de histórias infantis onde se observa o estereótipo de madrasta ruim que tem filhas muito más, percebe-se o fato de que as filhas não aprendem a ser boas, pois a mãe não o é. Assim, vejamos:
“Logo depois do casamento, a madrasta mostrou claramente o seu gênio ruim. Ela não conseguia suportar as boas qualidades de sua jovem enteada, pois isso tornava suas filhas ainda mais detestáveis”. (PERRAULT, 1993, p.4)
Rapunzel (IRMÃOS GRIMM, 1994), mesmo vivendo trancada em uma torre, atraiu a atenção e o amor de um príncipe rico e maravilhoso que a seduziu. No entanto, mais tarde eles se casaram, afinal, ela era linda e isso era suficiente. A fada, a princesa, a mocinha, são sempre protótipos da raça ariana: cabelos longos e loiros, olhos azuis, corpo esbelto. O mocinho, o príncipe, é alto, corpulento, forte, elegante. A princesa é boa e submissa, características muito fortes nas princesas dos contos de fadas. Na história da Guardadora de Gansos (IRMÃOS GRIMM, 1994), nota-se penalidades muito cruéis para as pessoas que fogem à regra da beleza, da perfeição e da bondade. A Donzela das Mãos de Prata (YEHEZKEL, PARAISO, 2004), por ser tão pura e linda, mesmo tendo sido dada por seu pai a um feio mago, foi poupada em sua virgindade e, mais tarde casou-se com um rei muito rico e foi feliz para sempre. Sua pureza e beleza garantiram sua felicidade. Para Cashdan (2000, p.24): "os contos de fada possuem muitos atrativos, mas transmitir lições não é um deles". Interessante citar a história Os Seis Criados do Príncipe (IRMÃOS GRIMM, 1992), onde a princesa mesmo sendo uma linda criatura, externamente falando, não era dotada de um coração muito generoso. No entanto, foi-lhe dada a chance de se redimir das maldades, pois, afinal, ela era muito graciosa e por ela havia se apaixonado um príncipe também lindo e muito rico. Notamos que nas histórias de contos de fadas, a jovem pobre, que é personagem principal, acaba se descobrindo princesa e se apaixona pelo príncipe, que aparece como que por encanto em sua vida para no final se casarem e serem felizes para sempre. Talvez nem importe tanto a origem da jovem, podendo inclusive ser pobre, desde que satisfaça um quesito importante para que seja a eleita: deve ser linda. Pobre dela se não for perfeita! E o príncipe, além de ser lindo deve ter um belo cavalo, um grande castelo e muito dinheiro. Na história de Chapeuzinho Vermelho, as diversas versões foram se atualizando conforme os padrões da época. Na versão traduzida (PERRAULT, 1993), o lobo come a neta e a avó; em outra versão, o caçador salva-as abrindo a barriga do lobo (PENTEADO, 1994), já em outra mais atual, a menina enfrenta o lobo (COLASANTI, 1994). Ao longo do tempo, a literatura infantil vem desempenhando o papel de mostrar à criança a relativização dos conceitos de bem e mal em toda a sua ambigüidade humana. Ainda falando a respeito das lindas criaturas, que tinham certo gênio difícil, vejamos A Princesa dos Cabelos Azuis (ALMEIDA, 1993). A princesa dessa história não tinha cabelos louros, mas maravilhosos cabelos azuis e era rica, porém, só para contrariar a família casou-se com um homem muito feio, de aparência assustadora e asquerosa. Percebe-se que a história já vem ao encontro de tempos mais modernos, e o feio da aparência passa a ser visto sob outro ângulo: o da beleza interior. A linda moça apaixona-se pelo feio rapaz, afinal, ele apresenta uma riqueza diferente: um bom coração. Nesse caso, sua aparência externa não é importante. No livro Histórias de Bruxa Boa (LUFT, 2004), a bruxa Lilibeth, cujo nome sugere docilidade, é diferente das outras em seu comportamento e até fisicamente. Ela tem feições tranqüilas, um olhar doce e risos ao invés de estridentes gargalhadas. Ela não apresenta o estereótipo da bruxa e não é de sua natureza fazer maldades Lilibeth é uma bruxa avó, sem as conotações de beleza das princesas das histórias mais antigas, nem da feiúra que representava a bruxa, o lado perverso da história. Sua beleza reside na bondade do seu coração. Para ela, ser bruxa é ter poderes para ajudar, ela nem sabe fazer maldades. Na história, a bruxa Lilibeth, quando indagada por Tatinha sobre o cabelo das irmãs recém-nascidas diz:
- Tatinha, tudo tem seu lado bonito e seu lado feio, seu lado bom e seu lado ruim. Não se pode dizer que só cabelo comprido é bom, ou que só olhos azuis são bonitos. Nem que o que é feio é sempre ruim, ou o bonito sempre bom. Lembra que já lhe falei isso? (LUFT, 2004, p.68)
No livro Bruxa Madrinha (PENTEADO, 1990), a história é de uma bruxa sem maldade nenhuma, que resolve ser madrinha de uma garotinha pobre do subúrbio. Na história, as outras bruxas não são más nem horrorosas, elas têm a aparência tranqüila, são meigas, usam delicados vestidos de bolinhas e são citadas como inocentes vovozinhas; seus gatinhos são uns amores e têm nomes delicados como: bombom, caju, brinco. Chamou-nos a atenção um trecho do livro: “Esta obra foi originalmente publicada em 1958, na página infantil do jornal O Estado de São Paulo” (PENTEADO, 1990, p.3). Interessante atentar para o fato de que, mesmo em tempos mais remotos, houve preocupação por parte de alguns escritores em quebrar alguns estereótipos, nesse caso, o da princesa linda e loura.
Com relação a isso, Guimarães, (2007) nos fala sobre a ambigüidade das relações humanas:
Essa diferença pôde ser sentida pelos alunos de Mari Stela do Centro de Educação Infantil Padre Réus, localizado no município de Palhoça (SC). A educadora acredita que seu trabalho pode modificar a maneira como seus alunos lidam com o preconceito. “Na minha aula, as princesas podem ser negras, japonesas, morenas, ruivas ou mulatas, não apenas loiras. Isso ajudou meus alunos a questionar o padrão de beleza imposto pela sociedade”, relata a professora.
Na história Cabelo ruim? A história de três meninas aprendendo a se aceitar (PINTO, 2007), se explica a luta de três amigas que enfrentam as manifestações preconceituosas com relação ao seu cabelo crespo e vão, aos poucos, aprendendo a aceitá-lo e amá-lo do jeito que é, com coragem e ousadia para fazer e ser diferente. A história procura desconstruir a idéia do diferente como feio e inadequado. É possível observar uma mudança considerável nesta temática, na tentativa de derrubar todos os estereótipos enraizados na nossa cultura há tantos séculos. As novas histórias reconstroem os tradicionais contos adaptando-os aos tempos modernos. O garoto da história Minha Irmã é Diferente (ALMEIDA, 1991), percebeu que amava a irmã, com todas as suas diferenças e dependências e que as pessoas a quem amamos podem ser iguais ou diferentes de determinado padrão, que isso é relevante. As histórias infantis, mais precisamente os tradicionais de contos de fadas, nos deram um suporte importante para podermos entender como se apresentam o bem e o mal numa atmosfera de fantasia com que os contos de fadas sempre nos embalaram. Sabemos que é uma necessidade psicológica de buscar soluções mágicas e de criar seres fantásticos para superar uma realidade que impõe limitações e revela conflitos, assim como uma forma de superá-los e recuperar a harmonia existencial, tendo uma função clara: servir para as crianças como uma fonte de aprendizado sobre o mundo e seus perigos. Percebe-se que as histórias infantis de contos de fadas foram criadas como um recurso fundamental no processo do desenvolvimento humano porque se acreditava favorecer a comunicação via imagens simbólicas, condição básica para entender o significado profundo da vida. Crescemos ouvindo a descrição da Branca de Neve que é linda, esguia, cabelos pretos como o ébano, pele branca, bom coração. Sua madrasta personifica a maldade de bruxa, a fim de castigar a enteada por sua beleza, tendo associado a essas imagens, o adjetivo bruxa, como caracterizador de mulher feia e megera. No entanto, Cashdan (2000, p.52)
ratifica a idéia da bruxa como ser negativo: O encontro da criança com a bruxa traz à baila o traço negativo que a bruxa personifica. Embora todas as bruxas sejam más, a natureza exata dessa maldade varia de história para história.
A visão maniqueísta[7] estereotipada da bruxa apresenta-a como um personagem padrão de maldade e suas ações ou reações nunca sofrem mudanças. É certo que os contos de fadas costumam dividir os personagens em bons e maus, de forma que, desde pequenos, somos levados a identificar bruxas como fazendo parte do lado do mal e fadas do lado do bem. O grande potencial do conto de fadas é sua capacidade de falar, metaforicamente, sobre a estrutura familiar e sobre conflitos psíquicos naturais do ser humano, como o medo da morte ou o medo da separação, conceitos presentes em histórias como: Branca de Neve, Cinderela, A Bela Adormecida. Pudemos observar que certa “violência” aparece nos casos que mostram a prepotência do mais forte que explora o mais fraco e da astúcia deste último tentando vencê-lo. As narrativas, muitas vezes, expressam toda uma temática ligada a este aspecto: jogo de poder, ambições materiais, vaidades, orgulhos, ciúmes, ódios e paixões. É importante a convivência infantil com essas fantasias, ainda que povoadas de estereótipos, pois isso lhe possibilitará fazer uma análise com os heróis de outros tempos, outros heróis e heroínas. Observando a trajetória dos contos infantis através dos tempos, notamos que as viagens pelo mundo da imaginação demonstram um aprendizado mais suave através de uma realidade menos dolorosa, onde narrativas cruéis e mortes violentas perdem espaço para o aprendizado mútuo e o respeito do mais forte pelo mais fraco. As histórias infantis tomaram novos rumos, o conceito do bonito significando o bem, e do feio significando o mal caiu por terra e alguns escritores ousaram mudar os conceitos de beleza, bondade, maldade, prezando uma versão mais suave de contos infantis. Podemos exemplificar com: Histórias de Bruxa Boa (LUFT, 2004), Minha Irmã é Diferente (ALMEIDA, 1991), Uxa – Ora Fada, Ora Bruxa (ORTHOF, 1985). Foi a possibilidade de estudar os mitos e as discriminações presentes nas histórias, que nos levou a imaginar o mundo norteado pelos contos dos livros infantis. Esta pesquisa ajudou-nos a desmistificar a magia existente por trás dos contos tradicionais onde tudo é perfeito e belo, trazendo para a realidade outras belezas. Atualmente podemos observar que, mesmo ainda estando em alta as princesas loiras, já despontaram outras belezas como a do filme lançado pela Disney em julho/1995 que conta a história de Pocahontas, filha de um chefe indígena.
Tiana, a princesa negra criada pela Disney para o filme The Princess and the Frog, ainda sem tradução, tem previsão para estrear no Brasil em dezembro de 2009.
Ilustração nº 16 http://www.omelete.com.br/images/galerias/frogprincess/princessfrog_03.jpg
5 CONCLUSÃO
Um conto infantil não deve ser visto como algo sem importância. Ali estão presentes discursos e conteúdos que podem estabelecer muitos “diálogos” e muitos discursos com o mundo que nos cerca. É preciso proporcionar à criança uma identificação com a leitura pelo prazer que esta lhe proporciona, que ela seja alimento sadio à sua imaginação ao mesmo tempo em que a inicia no conhecimento e na aceitação da realidade. É de grande importância que os contos infantis estejam em sintonia com o nosso mundo, hoje regido pela diversidade, pelos conceitos de pluralidade, pela comunhão de contrários e tão carente de respeito e tolerância mútua. Atualmente, já é possível encontrar nos livros de histórias infantis protagonistas como heróis relutantes, humanos, com “defeitos” que precisam ser superados. É normal que o herói tenha atributos positivos: força, coragem, capacidade de superar os obstáculos propostos, além de alguma coisa que o torna único. Atualmente, nossos heróis já mostram um lado mais humano, mais coerente com a realidade: eles têm defeitos, fraquezas e não raro, nem são tão lindos quanto os de outrora. A quantidade de heróis brancos, lindos, louros, olhos azuis, contornos perfeitos e de princesas com atributos físicos invejáveis tem diminuído e já vemos heróis subvertendo essa tendência. As princesas de hoje são mais fortes, mais decididas, não necessariamente belas, mas se encantam com o que está além das aparências. Heróis adequados à realidade já são bastante comuns, basta ver os filmes no cinema[8]. É interessante observar como os heróis atuais são um pouco mais ambíguos do que os de antigamente, que precisam superar as suas próprias dúvidas e conflitos. Suas habilidades são, ao mesmo tempo, ordinárias e extraordinárias. Os heróis, no final da estória, sempre ou quase sempre sacrificam alguma coisa muito importante para eles próprios, fazem uma escolha crucial: escolher o menor entre dois males. Nossos heróis modernos já não se vingam tão cruelmente dos inimigos, como víamos nos livros de contos da carochinha, onde as bruxas e madrastas eram cruelmente assassinadas ao mesmo tempo em que o príncipe e a princesa celebravam suas bodas. Nossos heróis da atualidade, mais de acordo com a realidade humana, apresentam certa tendência em perdoar o inimigo e encaminhá-lo para o bem, mostrando-lhe suas falhas e dando-lhe uma nova chance de viver em sociedade. Pensando em um contexto de diversidades, escritores e escritoras começaram a escolher personagens que fossem condizentes com conceitos atuais. Essa dimensão ambígua do ser humano ganha forma através de um personagem mais moderno, típico da ficção contemporânea. Conforme os apontamentos de Oliveira (2001), esse tipo de personagem não é necessariamente bom ou mau, ele passa a "estar" bom ou mau dependendo da situação existente. A visão da bruxa passou por muitas transformações e, atualmente, nota-se que algumas bruxas de histórias infantis agem com extrema bondade, e muitas vezes, comportam-se como fadas, imitando-as na sua magnitude. Foi diante dessas inquietações que surgiu a temática deste trabalho, a fim de investigar as histórias de contos de fadas, sua interferência no imaginário infantil, e paralelamente, como se situaria a imagem da bruxa (mal) e da princesa (bem) nos dias de hoje.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cecília Meireles “... Liberdade, essa palavra
Os resultados destas análises a respeito dos estereótipos nos contos de fadas reforçam a presença fundamental do maravilhoso, que dá ao conto de fadas o caráter imaginativo, caráter esse que não obedece às leis naturais que regem o nosso planeta. Mergulhada neste mundo, a criança reescreve sua realidade pelo imaginário, pelo brincar, que é o espaço do tudo pode, do mundo do faz de conta. Entretanto, embora o conto de fadas tenha um efeito terapêutico na medida em que possibilita à criança encontrar uma solução para as suas dúvidas através da contemplação do irreal, ele não a tem preparado sobre importantes questões do mundo exterior, como por exemplo, o respeito pela diversidade. Os estereótipos que levantamos e analisamos marcam presença constante nas histórias dos livros de contos de fadas e reforçam a idéia de um padrão de beleza como representação do bem em oposição ao outro padrão (do não-belo) como representação do mal, possibilitando a internalização de conceitos e de exclusão. Além disso, esses estereótipos erguem barreiras que impedem a inclusão do diferente, daquele que não se enquadra no paradigma instituído. Desse modo, o preconceito constitui-se numa construção da própria sociedade que torna natural o que é cultural, categorizando os indivíduos em função de atributos considerados comuns e “normais” e rejeitando os que aí não se enquadram. Forjam-se, assim, preconceitos que estigmatizam as pessoas e são responsáveis por tanto malefício. Os estereótipos presentes nas histórias de contos de fadas reforçam um preconceito já arraigado na nossa sociedade, causado pela ignorância e pelo autoritarismo de uma sociedade doente, que rotula o pobre, o negro, a mulher, o doente, o estrangeiro e todo aquele que se mostrar diferente. Ou talvez seja apenas a dificuldade de todos nós de rompermos alguns obstáculos onde nos fechamos e continuamos, ano após ano, perpetuando para nossas crianças histórias funestas que pregam o horror, o preconceito e as distorções de personalidade, aliadas a uma falsa imagem do que seja bem, mal, bonito, feio. As histórias de contos de fadas escondem por traz de toda sua magia e encantamento cenas de violência, prostituição, ódio, separação dos pais, egoísmo, sexualidade, abandono, rejeição e tantos outros. Diante desta realidade, estamos convencidos da necessidade urgente de se repensar o que é oferecido à criança como fonte de aprendizado e mesmo de recreação. Torna-se necessário desmistificar a idéia de que a criança deve ser poupada da dor a todo custo, ainda que seja vital sinalizar os limites. Cabe a nós, enquanto responsáveis pela geração de amanhã, mostrar a eles novas construções literárias, autores e autoras preocupados não só com a saúde do nosso planeta, mas também com a saúde mental das nossas crianças. Pudemos ver trabalhos como os da escritora Sylvia Orthof (1985), que usou seu talento literário e uma visível preocupação com seus leitores no compromisso de desconstruir os estereótipos criados na literatura infantil ao longo da história. A escritora Lya Luft (2004) com suas histórias de bruxa boa; as considerações inteligentes de Alice Itani e Lígia Assumpção Amaral (1998) e uma versão interessante da história do lobo mau, contada na perspectiva dele mesmo (SCIESZKA, 2005). Embora estejamos vivendo num mundo constituído pelas diferenças, que ainda não são devidamente reconhecidas e respeitadas, pudemos observar nas nossas pesquisas, que as tendências literárias apontam para uma nova realidade e que certamente nossas crianças conhecerão heróis e heroínas verdadeiros, preocupados com o planeta, empenhados em acompanhar os passos da nova geração. É importante ressaltar que, para entender a fantasia presente na literatura infantil, torna-se imprescindível considerar o fato de que uma criança é dotada de razão e emoção, com uma mente plena de desejos, dúvidas, medos, angústias e devaneios, e que ela é um sujeito que se constrói e está em constante transformação afetiva e emocional, circulando entre o mundo da leitura e a leitura do mundo.
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ROSO, Adriane. et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais de gênero. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822002000200005&script=sci_arttext&tlng=pt >. Acesso em: 25 jan. 2009
SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos. Tradução de Pedro Maia. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.
URBAN, Paulo. Psicologia dos contos de fadas. Revista Planeta, n. 345, jun. 2001. Disponível em: <http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/contos_fadas.htm>. Acesso em: 05 nov. 2008.
YEHEZKEL, Raquel Teles; PARAISO, Izabel. Histórias encantadoras para 365 dias. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
[1] A chamada classe social nada mais é que a divisão de pessoas feita a partir do seu status social e de outros fatores ligados a ele. É resultado da forma com que as pessoas viviam desde o período da Idade Média quando havia os estamentos, formação de camadas sociais, onde os senhores feudais e o clero eram “os indivíduos da classe alta", os servos “os indivíduos da classe baixa”, porém adaptadas à situação do seu momento histórico (CABRAL, 2008).
[2] Lígia Assumpção Amaral, PUC-SP defende a idéia de que são três os parâmetros que definem a diferença, desvio ou anormalidade. (1998, p.13) [3] Paralelamente a outras características como: tipo de cabelo, cor dos olhos ou da pele, sujeitas à variabilidade decorrente de herança genética ligada à característica dos ascendentes. (AMARAL, 1998, p.13) [4] O antropólogo Gilberto Velho (1989) nos fala com muita propriedade desse fenômeno bastante usual: a patologização do desvio – moeda corrente em nossa cultura. (APUD AMARAL, 1998, p.15)
[5] São expressão cristalina e simples de nosso mundo psicológico profundo. De estrutura mais simples que os mitos e as lendas, mas de conteúdo muito mais rico que o mero teor moral encontrado na maioria das fábulas, são os contos de fada a fórmula mágica capaz de envolver a atenção das crianças, despertando-lhes (idem nos adultos sensíveis) sentimentos e valores intuitivos que clamam por um desenvolvimento justo, tão pleno quanto possa vir a ser o do prestigiado intelecto. (URBAN, 2001)
[6] Muitos adultos ficam chocados com a violência dos contos de fadas e se surpreendem com o fato de que não a percebiam quando eram crianças, comprazendo-se nela. É que a maioria das crianças, além de aceitar naturalmente o maravilhoso, espera com inabalável certeza aquilo que o conto promete e sempre cumpre: "e foram felizes para sempre". A gente se engana, portanto, quando tenta "açucarar" os contos ou omitir as passagens "violentas”. (CHAUÍ, 1984, p.32-54) [7] Segundo consulta ao dicionário Michaelis, Maniqueísmo é uma religião sincretista gnóstica, fundada por Maniou Maniqueu (século III), na Pérsia, segundo a qual o universo é criação de dois princípios que se combatem: o bem, ou Deus, e o mal, ou o diabo.
[8]Citamos aqui o filme: SHREK (2001) Estúdio: DreamWorks SKG, lançado em 2001, e que fez um grande sucesso no cinema, onde o astro principal é um ogro feio e desajeitado, mas apaixonante, que apesar da aparência grotesca, é doce, sensível e não tem medo de demonstrar suas inseguranças e fragilidades.
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