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O OLHAR BLINDADO de Janela da Alma e Ensaio sobre a Cegueira PDF Imprimir E-mail
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Escrito por Elizabete Terezinha Gomes   
Qui, 28 de Junho de 2012 00:00

[1]Por Elizabete Gomes

As cenas transcorrem em Janela da Alma, de Walter Carvalho e João Jardim, em Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago e nas cidades dos homens - um mesmo tema -, a cegueira, duas narrativas, uma realidade e muitas histórias. As personagens circulam em primeiro plano num mundo condicionado por uma limitação física e por um mundo privado da beleza trazida pelo grau de percepção do nosso olhar.

Assim, estabelece-se nos dois textos a dialética entre o ver e o enxergar: o dentro e o fora, o self e o mundo, o agora e o diante, a alma e o corpo. A visão dos autores é a de que a nossa visão é a própria “janela da nossa alma”, que não só mostra, mas também absorve. O que têm em comum Janela da Alma e Ensaio sobre a Cegueira? Aparentemente tudo. O olho humano. Mas o enfoque dado ao olho humano nos textos não é o mesmo.

 

Em Janela da Alma, “O olho humano, diferentemente do dos pássaros (que é semelhante a um espelho), possui a inexplicável qualidade de se deixar penetrar pelo olhar do outro, revelando-se portador de um sentido que ninguém adivinha antecipadamente”, Ferry (1997). No Ensaio sobre a Cegueira o olho humano é posto como um dispositivo que promove um jogo entre o humano e o desumano, ou como diz a própria epígrafe do livro: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.Ver como se fosse a primeira vez, como diria Pessoa (1914):

“[...] ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras [...]”.

Desde os gregos, reflexões filosóficas e artísticas têm sido feitas a respeito do olhar. A supervalorização desse sentido humano – a visão, dentre os cincos sentidos, nas narrativas dos dois autores, ganha inspiração na premissa de Leonardo Da Vinci (séculos XV e XVI) de que os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo. "O olho abraça a beleza do mundo inteiro. É a janela do corpo, por onde a alma especula e usufrui a beleza do mundo. O que há de admirável no olho é que através dele - um espaço tão reduzido - seja possível a absorção das imagens do universo. De sorte que esse órgão - um entre tantos - é a janela da alma, o espelho do mundo”.

A visão como é posta nestas duas narrativas é, antes de qualquer outra coisa, uma questão cultural, é influenciada mais pelo mundo que nos rodeia do que por dados ou fatores naturais. Os textos discutem a questão do ponto de vista e da imagem no mundo moderno e como a falta de visão influencia a personalidade e a vida das pessoas. Apresentam-se como um espetáculo invisível em que no primeiro ato observamos o descortinar do recôndito humano – uma viagem ao encontro do “eu” na companhia da consciência do estar no mundo.

Tanto em Janela da Alma como em Ensaio sobre a Cegueira a questão da imagem é o ponto alto da discussão. É um convite a olhar para o século XXI pelo prisma da imagem que possibilita abrir outras janelas para a representação da realidade. Imagens e palavras são os recursos utilizados pelos autores, a imagem – magia da forma -, que se basta por si mesma para expressar uma suposta realidade; a palavra – a magia do discurso -, que serve como contraponto para argumentar sobre a imagem.

Se a imagem e a palavra geram incursões diferentes sobre a realidade, como amoldar essas possibilidades aos que não enxergam, ou ainda, aos que enxergam um mundo fora de foco?

Em Janela da Alma, que traz o depoimento de várias pessoas com deficiência visual, da miopia até a cegueira plena, a imagem vista por esses protagonistas não é a de sentido da imagem em sua constituição imanente. É algo transcendental, está além-mundo, além do valor de costume ou sentido literal da representação visual e verbal que constitui a imagem. A maneira como essas pessoas se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo é como a relação interativa que se dá entre a obra, o artista e o espectador.

Segundo Foucault (1999, p. 3 -11), em Las meninas “[...] como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis”. O artista não está visivelmente representado na obra, mas ao mesmo tempo se situa nesse ponto invisível, nessa cortina de significados onde aparentemente, esse lugar é simples: constitui-se de pura reciprocidade: olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla”.

Dessa forma, é o olhar dos personagens de Janela da Alma, eles não se vêem, mas se instituem representados. Toda representação, tanto deles como do mundo que os cerca, acontece da mesma forma que o fenômeno artístico - na relação artista, obra e espectador. O jogo da representação se dá na imagem constituída pelos seus olhares, segundo a ótica de seus sonhos e seus valores. Esse jogo é o mesmo que acontece no romance de Oscar Wilde (1891). Através de uma história inverossímil, Basil pinta o retrato de Dorian Gray, mas com uma paixão ardente, em que o epílogo transcende a realidade física, e em certo sentido, captura a aura do espírito que nos sustenta. Em Janela da Alma, seus personagens abordam a visão no sentido poético ou através de uma blindagem sígnica, em que têm seus olhares poetizados, interiorizados, romanceados.

Isso se comprova quando os entrevistados se atêm mais nas distorções da visão: o juízo de Saramago, que também é um dos protagonistas do documentário, de que “a beleza depende do grau de acuidade de nosso olhar – o rosto da mulher amada pareceria repulsivo se enxergássemos como uma águia os detalhes quase microscópios de sua pele” -, assim como a falta da “moldura” proporcionada pelos óculos, sentida por Wim Wenders, ou a fala do fotógrafo e cineasta Walter Carvalho, que tem 7,5 graus de miopia, quando diz que “a realidade desfocada é muito mais bonita [...] ela fica abstrata” e o músico Hermeto Pascoal ao ser perguntado como se vê, como vê o outro e de que maneira se relaciona com o mundo responde: “Eu pedi a Deus que me deixasse um tempo cego, porque tem tanta coisa ruim que a gente vê, que atrapalha a visão das coisas que gente quer fazer na vida”.

Ensaio sobre a Cegueira também é um cenário perfeito para se ir além na discussão da imagem e da palavra que geram incursões diferentes sobre a realidade. Saramago (1995), como observador e crítico de seu tempo, foi ferino – mas visionário quando fez uma alegoria das sociedades contemporâneas -, refletindo sobre as pequenezes do caráter humano e das relações sociais. Nesta narrativa, a cegueira humana é enfocada diferentemente do enfoque dado em Janela da Alma, que tem mais de um modo de olhar. Aqui, a cegueira humana é posta num jogo entre humanização e desumanização, solidariedade e egoísmo, perda e superação dos valores mais imperiosos de uma sociedade, numa visão humanística.

É nesse jogo social, que Saramago remete-nos a incursões na história e filosofia, configurando o processo de crise pelo qual atravessam as sociedades capitalistas ocidentais no novo milênio, em que as fronteiras entre civilização e barbárie são quebradas. Essa preocupação com a evolução das sociedades humanas já se vê em Freud (1997). Freud, em 1930, no seu famoso trabalho “O Mal-Estar na Civilização”, denunciava a difícil relação do homem consigo mesmo e com o seu semelhante, que, segundo ele, a questão estaria no fato de se combinarem indivíduos isolados, depois famílias, raças e povos numa grande unidade, o que significaria um grande esforço da humanidade, pois, em nome da aproximação, da civilização, ela tem de reprimir seu instinto oculto de destruição.

Ensaio sobre a Cegueira é um texto nos moldes kafkaiano, tanto no seu estilo alegórico como na antevisão de seu tema. Traz à tona a materialização das tensões sociais diante do caos. Kafka, em suas obras, também focaliza todas as coisas que dificultam viver em nossa época, onde as organizações e as estruturas em vez de agirem em benefício da pessoa, contra ela se põem. Em A Metamorfose[2], o que queria dizer Kafka com a possibilidade de um ser humano poder, de um momento para outro, virar uma barata?

Não seria o mesmo que Saramago quis dizer no momento em que todos naquela cidade fictícia ficaram cegos? Não seria a lembrança da responsabilidade de ver com o olhar do outro, quando deixa apenas a mulher do médico enxergando?

Outra relação que é possível fazer em Ensaio sobre a Cegueira é com as concepções marxistas, a medida em que se parte do pressuposto de que não existem “interesses comuns a toda a sociedade”. A abrangência desenfreada do capitalismo faz com que a humanidade perca a consciência de si, se autodestrua, se massifique e se embruteça, assemelhando-se a uma mercadoria. Segundo Marx[3], com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.

Paralelamente a essa relação marxista feita ao texto de Saramago, em que a cegueira da humanidade está ligada à desumanização, aparece a alienação das sociedades marcadas por imposições hierárquicas e pela força do poder. Essa posição é vista no episódio do velho da venda preta quando relata o que acontece do lado de fora do manicômio, através das notícias do rádio e do que via enquanto ainda estava . É ele que abre os olhos para essa realidade do mundo, das atitudes impensadas diante do caos, de quem está no poder, tentando abafar o problema ao invés de estudá-lo. A questão aqui a ser entendida é como o poder possui toda essa força e aceitação?

Citando Foucault (2001), novamente, poder é como uma rede produtiva, que para ser mantida conta com mecanismos de força aceitos pela sociedade. Que mecanismos seriam esses? Ora, sabe-se que o homem sobrevive no meio de crenças, que o senso comum é que cria as verdades. Crenças, verdades são a maior sustentação do poder. Então, o pressuposto é que os homens não se submeteriam às contradições de uma força se não a aceitassem como verdadeira. A idéia de verdade, a verdade como lei, como conjunto de artifícios regulados, segundo Foucault, é a própria expressão do poder. O entendimento desses aspectos é importante para a compreensão da cegueira no texto de Saramago. No final da narrativa os personagens voltam a enxergar, mas mantêm-se cegos, condicionados, visto que estavam submetidos ao regime do poder, que exige regras, estimula efeitos, garantindo a reprodução e a manutenção da cegueira, da alienação.

Assistir Janela da Alma e ler Ensaio sobre a Cegueira é ter a oportunidade de construir um olhar policromo, atravessado por uma rede de novas formulações, construídas pelas imagens ocultas e pelas palavras silenciadas. Ver e enxergar se reiteram o tempo todo -, o olhar dos que vêem, dos que não vêem e dos que enxergam ou não enxergam é a tônica dos dois textos. As narrativas, enquanto configurações de linguagens, edificam uma tessitura de sentidos por meio do silêncio, do implícito, da metáfora, da poesia, da imagem subjetiva e condicionada. Ver e enxergar se constituem mutuamente na concepção das pessoas olharem o mundo através de suas imagens.

O olhar blindado do título deste ensaio é uma alegoria que faço a um tema instigante – a contemplação do mundo na ótica do espelho da alma. Refiro-me a “o olhar blindado” de Janela da Alma, no sentido da deficiência visual, de estar impedido de ver algo, mas, também, protegido de enxergar aquilo que danifica a alma. E a “o olhar blindado” de Ensaio sobre a Cegueira, no bloqueio de se enxergar o belo de que tanto a alma humana necessita. Os autores ensejaram extrapolar o limite da unidade textual, desvelando seus textos numa constelação de sentidos estéticos, poéticos e humanísticos.

Para finalizar, relaciono essa discussão com as ancestrais preocupações da humanidade. Platão, em o Mito da Caverna, que é um dos mitos mais conhecidos e que pode, ainda hoje, ser discutido pela sua atemporalidade, promulgou essa análise no universo do conhecimento, mostrando a concepção de que conhecer exige liberação das correntes que nos prendem à ignorância. A caverna equivale ao mundo do sensível, assim como na cidade fictícia de Saramago, e o sol é a luz da verdade, cuja luz se engendra dentro dela, do mesmo modo que em Janela da Alma. Os textos são uma representação da maneira de ver do ser humano - uma metamorfose da sombra à luz -, do captar com os olhos do corpo para olhar com os olhos da alma.

REFERÊNCIAS

FERRY, Luc. O homem-Deus ou o sentido da vida. Porto. Asa, 1997.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 8.ed. São Paulo: Martins fontes, 1999.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. http://www.espacoacademico.com.br.

JANELA DA ALMA. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Roteiro: João Jardim. Direção de fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Karen Harley e João Jardim. Brasil: Copacabana Filmes, 2001. 73 minutos.

PESSOA Fernando. O Guardador de Rebanhos. Alberto Caeiro, [post. Maio 1914]; [Lisboa].

SANTAELLA, Lucia. Estética, de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento, 2000.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das letras, 1995.



[1] Mestre em Ciências da Linguagem. Texto escrito na disciplina de Estética durante o curso de mestrado/2007.

[2] A metamorfose, de Franz Kafka, foi escrito em 1912, quando o autor contava vinte e nove anos. É um de seus poucos romances que foram finalizados e publicados.

[3] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1963.

 

Autor deste artigo: Elizabete Terezinha Gomes - participante desde Qua, 21 de Janeiro de 2009.

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