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Cotas: Uma questão de justiça social ou uma solução mistificadora? PDF Imprimir E-mail
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Escrito por Vera Lúcia Bazzo   
Qua, 14 de Julho de 2004 21:00

Introdução
Desde a troca de ministros na pasta da Educação, ocorrida no início deste ano, o tema da Reforma do Ensino Superior no país ocupa de forma intensa a agenda do setor educacional, desencadeando as mais diversas reações por parte de intelectuais, professores e estudantes, políticos e formadores de opinião em geral, bem como de toda a sociedade. Não há um só dia em que jornais e revistas, especializadas ou não, deixem de publicar notícias sobre o que se convencionou chamar simplificadamente de Reforma Universitária.

O Ministério da Educação em função disso tem batido o recorde na ocupação de espaços midiáticos, perdendo apenas para as sempre revisitadas melancólicas notícias da área econômica ( juros altos, desemprego crescente, salário mínimo de R$ 260,00, por exemplo...) ou para o relato sensacionalista das tragédias da violência nas grandes cidades, cada dia mais denunciadoras da barbárie a que o país está submetido nestes tempos de globalização e miséria.

Sob a ameaça de greve nas universidades federais, já com movimentos fortes deflagrados nas estaduais paulistas como se a dizer da insatisfação geral do setor, começam a surgir os primeiros contornos dessas novas orientações políticas em forma de anteprojetos oriundos das associações representativas de educadores e entidades educacionais organizadas, bem como do próprio MEC. Partes do documento deste último serão motivo de minha análise e comentários, sempre que se referirem à questão das cotas para ingresso no ensino superior.

Após meses de debates com entidades e especialistas em pesquisa e educação, o Ministério da Educação - MEC divulgou, nesta Segunda-feira, dia 7 de junho de 2004, as diretrizes da lei orgânica da Reforma Universitária, a ser encaminhada ao Congresso no fim do corrente ano.

Conforme o jornalista Humberto Rezende, que escreveu de Brasília para o 'Jornal da Ciência' (08 de junho de 2004), o anúncio foi feito pelo próprio ministro Tarso Genro, durante um colóquio com representantes de várias entidades científicas, em Brasília, e tinha por objetivo "dar mais foco à discussão sobre a reforma universitária e deixar mais clara a posição do governo sobre o tema, para ser debatido junto à opinião pública".

Segundo o ministro, com a proposta que o MEC começa a desenhar, "teremos uma Universidade mais acessível para as camadas populares, mais integrada às novas formas de conhecimento e ao saber global e mais autônoma, recebendo mais recursos da União".

Entre as propostas apresentadas, destacam-se:
- política de cotas nas Universidades públicas que beneficiem alunos negros, indígenas e oriundos das escolas públicas; (grifos nossos)
- autonomia universitária vinculada à comprovação de qualidade de ensino ou pesquisa;
- política de financiamento das Instituições de Ensino Federal (IFEs) a partir da criação de um fundo federal não contigenciável;
- eleição direta dos reitores das Universidades federais e de um pró-reitor acadêmico, ou equivalente, nas Universidades privadas;
- avaliação como parte integrante da autonomia e que sirva de referencial para o trabalho do Estado de regular e supervisionar a educação superior;
- busca de um novo modelo da estrutura de Departamentos, visando a uma maior conexão com a produção e extensão do conhecimento e melhor aproveitamento dos docentes e dos recursos;
- estímulo à flexibilização dos cursos de graduação para permitir um ensino mais rico e diversificado, sendo possível às Universidades oferecer um ciclo inicial de formação, com duração mínima de dois anos, ao final do qual o estudante receberá um título de formação básica superior.
Apesar da tentação de entrar no mérito de todos os temas devido a sua relevância para quem vive e pensa a universidade, iremos nos deter no assunto que mais despertou polêmicas e dúvidas depois do anúncio das referidas diretrizes: a política de cotas. A proposta do MEC com relação às cotas nas Universidades Federais é a de que se reservem 50% das vagas para alunos oriundos das escolas de ensino médio públicas, e que neste universo sejam reservadas vagas para negros e indígenas, de acordo com o percentual apontado pelo IBGE no estado. (novamente, grifos nossos)

O MEC quer discutir, ainda, formas de garantir que esse percentual seja observado não só no número total de vagas, mas também no interior de todos os cursos para não haver uma discriminação por carreiras, as mais "nobres" ficando novamente reservadas para quem já as detém historicamente. Para isso, propõe-se que seja determinado um diferencial máximo entre as notas dos alunos que ingressarem via cotas e os demais. Uma espécie de pedágio às avessas para os cotistas, que poderão ter notas menores para sua aprovação.

É um pouco sobre este tema que vou discorrer, sabendo de antemão que o espaço de que disponho é extremamente insuficiente para análises mais completas, porém tentando dar minha visão da questão, tendo como interlocutora a política anunciada e amparando-me em algumas leituras que fizemos sobre a questão durante o curso panorâmico que tivemos, além, por óbvio, dos artigos e matérias encontradas com fartura nos jornais e revistas nesses meses que antecederam o anúncio oficial de tais medidas.

Cotas: uma questão de justiça social?
Diferente de outros países, como os Estados Unidos, por exemplo, em que a Affirmative Action (Ação Afirmativa)(1) data da década de 60 (Oliven, 1996), as discussões sobre cotas para o ingresso na universidade pública brasileira, fora do âmbito restrito da sociologia, são recentes e, até bem pouco tempo, referiam-se quase que exclusivamente à questão do racismo. O tema inseria-se, portanto, na busca de uma política de ação afirmativa que pudesse reparar a dívida histórica da nação com os descendentes dos escravos, os chamados afro-descendentes, ou simplesmente, os negros.

Se esta já tardia tomada de consciência de que somos um país racista vem provocando muita discussão e perplexidade para quem "jura não saber que no Brasil existe isso", contraditoriamente também tem estimulado a realização e a divulgação de muitos estudos e pesquisas sobre esta temática, fornecendo conteúdo e motivação para o crescimento dos movimentos de consciência negra.
Nesse processo, as reivindicações de espaço nas universidades públicas surgem com força, não podendo mais ser ignoradas. Acrescente-se a isso a constatação de que há um outro conjunto de indivíduos, também historicamente discriminado, os índios, reivindicando seu direito à inclusão e teremos o quadro em que (algumas universidades anteciparam-se, criando seus próprios modelos) o Ministério da Educação se baseou para fazer sua proposta de criação de cotas raciais.

A primeira pergunta que nos assalta, e vem eivada de senso comum, é - e não se vai fazer nada para os pobres não negros ou índios? Não seriam discriminados socialmente os lourinhos filhos dos trabalhadores sem terra aqui do sul?

A resposta é complexa e tem que levar em conta a questão quantitativa, as estatísticas nacionais (2). É muito maior o número de negros, mulatos, pardos e índios (e sua descendência) marginalizados de qualquer processo educacional. São eles majoritariamente que lotam as periferias, que vivem nas favelas, que freqüentam as prisões. O desemprego e a miséria, assim como a população carcerária do país têm cor, têm cheiro, têm geografia.

Nas últimas décadas, no entanto, na ausência de uma reforma agrária que distribuísse melhor a terra, e a partir do desenvolvimento do capitalismo na agricultura com a conseqüente expulsão dos pequenos agricultores do campo, mesmo uma parte dos descendentes dos emigrantes europeus ( todos de pele clara e muitos com olhos azuis ), sem saída econômica possível, juntaram-se aos deserdados da senzala e com eles passaram a habitar as periferias das grandes cidades ou, então, a se organizar em movimentos de lutas campesinas.

Esta importante fração do povo brasileiro, sempre acossada pela péssima distribuição de renda que caracteriza as opções econômicas das elites desde o Brasil colônia, tem crescido assustadoramente em tempos de Estado mínimo e globalização, fazendo com que já não se possa ignorar o branqueamento da pobreza. Este conjunto de fatores talvez seja o motivo de o governo adicionar cotas para os alunos oriundos das escolas públicas independentemente de sua cor ou etnia.

Temos, portanto um quadro muito complicado de reservas de vagas para aqueles que ao longo da história vêm sendo excluídos de todos os benefícios do desenvolvimento: não têm emprego, não têm moradia, não têm acesso aos bens de consumo mais cotidianos, não têm boa escola pública, não recebem bons serviços de saúde, entre outras carências. É visando esta população, na tentativa de minimizar ( ou fazer de conta ?) as injustiças de toda ordem, que o governo propõe as cotas de ingresso à universidade pública.

Ora, parece-me que o problema fica cada vez mais complexo, sendo neste caso de natureza distinta da Ação Afirmativa para os marginalizados por racismo. Mesmo para estes, ao se declarar favorável à política de cotas raciais nas instituições de ensino superior, Boaventura Santos (2004) já advertia que a questão da discriminação positiva teria de estar combinada com a questão socioeconômica. Ele acredita que o acesso de negros e índios ao ensino superior não garante a permanência desse público na universidade e que, por isso, é necessário implementar uma política de concessão de bolsas que banque os custos desses estudantes.

No caso dos demais beneficiados, os alunos dos extratos mais baixos da população (renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio -sem necessariamente qualquer vinculação com cor/etnia), oriundos das escolas médias públicas, há também um grande risco de que as cotas não passem de uma falsa solução.

Segundo Maranhão ( 2004):

Os estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas já constituem 41,8 por cento dos concluintes das federais. A maioria, contudo, está concentrada nas licenciaturas, não em carreiras concorridas como Medicina, Odontologia, Direito, etc. Não temos certeza se isso acontece porque os candidatos carentes perdem as vagas, nos vestibulares, para alunos egressos de escolas privadas, ou porque eles sabem que não poderão dedicar a atenção e o tempo requerido por cursos com maior carga horária, maior duração, e que exigem mais tempo de estudos e pesquisas extraclasse. Isso nos remete a outra questão: como o governo vai auxiliar os carentes a bancar as despesas que um aluno tem na graduação, mesmo em instituições gratuitas, como transporte, alimentação e compra de material? Com uma renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio, exigida para ter direito às cotas, quem arcará com os custos se não tiver amparo da família, ou do Estado?
A menos que as cotas sejam acompanhadas de uma séria intenção de manter tais alunos nos cursos através de programas de assistência estudantil, como moradias, restaurantes universitários, bolsas de estudo, vales transporte, etc. (programas que existiram num passado recente, desbaratados hoje pela política de Estado mínimo, de privatização e terceirização de serviços públicos), o que poderá acontecer é uma inclusão excludente, o que já vem ocorrendo, de certa forma, com a política de inclusão em escolas comuns dos alunos com dificuldades especiais. Uma boa tese, uma realidade mal resolvida, porém.

Não seria, talvez, menos mistificadora uma solução a mais longo prazo que visasse primeiramente a uma melhor distribuição da renda nacional, ao mesmo tempo em que uma política coerente de melhoria imediata e urgente das condições de formação, trabalho e remuneração dos professores da Educação Básica apontassem para uma outra escola pública? Uma escola que realmente resgatasse a escolarização da maioria da população, nos termos em que já a defendia Anísio Teixeira nos idos da década de 30, colocando esses jovens em condições de disputar não só uma vaga no ensino superior, mas nele permanecer, daí, então, por conta de uma mais justa distribuição da riqueza socialmente produzida e que no atual estágio de barbárie do capitalismo é cada vez mais privadamente apropriada.

Será que é conservador este raciocínio? Será que é mais uma desculpa dos incluídos face à possibilidade de mudança nos seus já previsíveis destinos?

Não tenho, confesso, muitas certezas sobre este tema. Uma coisa, porém, me leva a defender as cotas, como em outros momentos defendi outras bandeiras tão ou mais polêmicas: a inclusão foi sempre nosso alvo; a distribuição das oportunidades também. Tudo o que vier a mexer, por pouco que seja, com os privilégios instalados, abrindo uma brecha qualquer no horizonte dos deserdados da terra, representa uma esperança de movimento, de criação de contrários, de contradições que obrigam a pensar e que empurram a realidade para outras direções em busca de novas respostas.

Quem sabe, possamos acreditar, como disse o Ministro Genro, que, "se bem implementado, ( grifos nossos) o sistema de cotas deve gerar uma distribuição igual no acesso ao ensino superior no prazo de dez anos, e que até lá uma política de melhoria na educação básica torne o sistema de cotas desnecessário". Argumenta ele, ainda, que "O sistema de cotas só faz sentido quando a estrutura social está tão deformada que tira a capacidade das pessoas de terem acesso à Universidade.

Com a melhoria da educação básica, as cotas se tornarão gradualmente menos necessárias".

Eu acrescentaria: que o atual governo consiga dar uma guinada na política econômica no sentido de iniciar o tão esperado processo de melhoria da estrutura social, devolvendo-nos, pelo menos a possibilidade da utopia, que mobilizou minha geração, na busca de uma nação menos cindida, de um povo mais próspero, educado e feliz.

Referências Bibliográficas:
1. REZENDE, Humberto. MEC apresenta diretrizes para a reforma universitária. Jornal da Ciência (e-mail), Brasília, DF, Edição de 8 de junho de 2004. Disponível em: Este endereço de e-mail está protegido contra SpamBots. Você precisa ter o JavaScript habilitado para vê-lo. . Acesso em 9 de junho de 2004.

2. OLIVEN, Arabela Campos. Multiculturalismo e a política de ingresso nas universidades dos EUA. Educação e Realidade , Porto Alegre: Universidade federal do rio Grande do Sul, Faculdade de Educação - v.1, n.1, p.74-87, fev.1976.

3. SANTOS, Boaventura. Universidade para Todos tem aval de sociólogo português. Folha de São Paulo. São Paulo, 05 de abril de 2004. Disponível em: Este endereço de e-mail está protegido contra SpamBots. Você precisa ter o JavaScript habilitado para vê-lo. .Acesso em 06 de abril de 2004, às 19:43.

4. MARANHÃO, Magno de Aguiar. Em busca da inclusão perdida. Revista de Gestão Universitária. Recife, PE. Ed. De maio de 2004. Disponível em: www.gestaouniversitaria.com.br Acesso em 09 de junho de 2004.

***
(1) A Ação Afirmativa traduz uma intenção de usar o poder público em benefício de vítimas de discriminação social. (Oliven, 1996).
(2)Vide: LUNA, Ary Braz. RACISMO. Painel do Leitor. Folha de São Paulo. 13/06/04.

 

Autor deste artigo: Vera Lúcia Bazzo - participante desde Qui, 24 de Junho de 2004.

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